Textos - crônicas e outros

A gostosa
Gostosa nos trejeitos, ao cruzar as pernas, no olhar insinuante, no silêncio enigmático, nas palavras estratégicas, em postagens e na fala rápida no trabalho. Não rebola um funk, convida-me a um aconchego, encontramo-nos naquele bar povoado, nunca a espreitei sensualmente, eu a descobri gostosíssima em imaginações.

Casa de Cultura Mário Quintana
O reflexo na pedra contém um alguém, um cão, um gato, talvez o pouso de uma ave
o pedreiro, os técnicos, os engenheiros, os garçons, os garis, as/os faxineiras/os, as/os copeiras/os, as/os recepcionistas/os, os pintores, as/os arquitetas/os, encontros furtivos, o silêncio
a pressão das patas de um cavalo
ouço vozes e preconceitos, tramando e divulgando ideias reiteradas
meu pai, um/a manipuladora de bonecos, atores em performances
interpretações eruditas e populares
as crianças como adultas, a negociação de um impresso, o fotógrafo ou o artista plástico
o poeta a revoar como um passarinho

Amar
Pode haver algo maior do que a cedência daqueles minutos?
Embora alguns dos quais de preocupação, foram preciosos, aprendi o legado do que é para sempre.

Livro
Repentinamente, sou surpreendido por um objeto diferente, é físico, o que é muito estranho, tanto quanto o fato de não estar ligado a nada, pode ser carregado a todo lado e infinitamente, não é dependente de qualquer energia, a única, porém, é a de quem o fez e dele se apropria; como usá-lo? Precisarei de um aplicativo, não encontrei, acioná-lo como? Virei de todos os lados e encontrei apenas papel escrito, não toco em nada, apenas naquilo a que chamam de páginas, repletas de palavras, algumas até mesmo de imagens, descobri coisas extraordinárias neste dispositivo, posso fechá-lo e abri-lo em qualquer lugar ou momento, ele não gasta energia, apenas e somente exige a minha concentração, a capacidade de leitura, interpretação e uma imaginação infinita.
Não preciso de menus, de senhas ou de alguma expertise, apenas decifrar letras e palavras combinadas em um conjunto de frases, parágrafos e capítulos.
Muito mais acessível do que um celular e surpreendentemente profundo, tanto que, por vezes, preciso parar de lê-lo, sim, é isto que fazem aqueles que os têm, o instante muito particular em que preciso relacionar o que li ao que vivi ou ao que aprendi.
Retorno, após este momento que pode ser apenas um minuto, dois, uma hora, um dia ou até semana, depende do impacto provocado quer pelo conteúdo, quer pela forma ou os dois a me paralisarem de uma forma incrível, fantástica e para um sempre.
A herança
Somos herdeiros de uma experiência genética fantástica, claro que criamos um espetáculo romântico, e apimentado, algumas vezes, mas precisamos ampliar esta concepção de indivíduo, já que herdamos muitas características de longa ancestralidade, embora a biologia seja fundamental, o mais interessante, ainda, é que não somos apenas isto, apreendemos outras características psíquicas com os diversos relacionamentos (amorosos, de trabalho e de amizade), parece que negligenciamos isto. Pensem a respeito do que somos, um somatório de múltiplas influências, algumas das quais até nem diretas, podemos absorver comportamentos e até sentimentos pela experiência literária, musical, cinematográfica, hoje digital, e ampliar a nossa capacidade intelectual, sem o laboratório biológico, embora ele exista dentro de cada um para constituir tais variáveis. E, dito isto, é interessante considerar o quanto os nossos entes queridos (nem só os próximos, como também os simbólicos e distantes) estão presentes em nossas vidas, o que comprova que a nossa individualidade é superficial. Ao apreciar, rir, recordar um gosto ou um perfume, ao lembrarmos outrém, praticamente o ressuscitamos, claro que não é mais aquela vida direta, a influência, contudo, permanece em nós, flutuando, interferindo, dando-nos os pré-requisitos para alçarmos o nosso voo. Somos uma herança não apenas genética, mas uma multiplicidade de outras vozes, talentos e equívocos que mantém viva uma presença nunca vã.
O relógio
É quem soube da dor de minha mãe quando nasci, desprezou as dificuldades pelos quais meus pais passaram com aquela chegada, marcou, porém, o instante em que saboreei a primeira gota de leite de minha mãe, o primeiro carinho ao usufruir um bem-querer. Suas 12 passadas deram-me o q não lembrei, não há passado e nem futuro, não registra, informa. É apenas mais dispositivo de medição imparcial. Um clique para nascer, um outro para tudo o que for primeiro, a lufada de ar que invadiu meus pulmões, o primeiro facho de luz, os sons agora mais nítidos, os tantos aromas... Onde está registrado tudo isto? Não há imagens fixas ou em movimento, o que sei ou lembro esvaneceu em minhas percepções...

Onde vai a vovó que todo dia se embeleza a passear? A vovó sabe que há perigos, assim mesmo insiste. Vai linda e cheirosa, dá bons-dias, e parece conhecer todas as aves, gatos e os cãezinhos. Vovó retomou hoje o caminhar ela é quem me oferece o fruir deste passear como todas as vovós dispostas.

Nada antecipatório (a distopia existe)
Alguns começaram a usar proteções. A nossa vantagem é que somos invisíveis aos seus olhos, precisamos multiplicar rapidamente, dependemos destas vidas para sobrevivermos, vocês não se alimentam de mortes? Lutaremos sempre. Precisam de tempo para descobrirem um medicamento eficaz para o combate, somos, porém, potentes. Este período permitirá mutarmos e provocarmos uma nova correria para descobrirem outra vacina. Passamos de mão em mão, beijo em beijo, abraços, e por gotículas, navegamos por chuviscos para chegar a um novo hospedeiro. Multiplicaremos em uma velocidade incrível, porém a morte deste contaminado será igualmente a nossa, teremos, contudo espalhado mais e mais cepas até que juntos nos exterminemos.

Professores
E quando nunca aprendemos o bastante para recordar para um sempre aquele(a) incrível professor(a) ensinando?

Os grilos no final da tarde

Resolvi dar uma volta no bairro. O ruído dos grilos lembram-me de outras querências, da praia, de um namoro nunca esquecido, de finais de tarde, mesmo que a trabalho, de cadeiras em frente à casa junto aos queridos, das charlas tão comuns daqueles tempos, da chegada de um visitante e que me registrou uma pequena e corriqueira historinha de cotidiano, das crianças hoje adultas a brincar, os grilos lembram-me destes ontens para, quem sabe, fazer sobreviver um pouco mais disto tudo.

Corônica vi-rus

A vida, parece, perdeu alguns sentidos, precisamos subir montanhas consideradas impossíveis, pulamos de penhascos e de prédios, recorremos às drogas para perder a consciência ou buscar uma outra, ameaçamos a vida de um modo jamais visto, colocamos a cabeça dentro de bocarras enormes, propomos sessões ameaçadoras de coragem individual e coletiva capazes de eliminar um ou milhares (o que importam os números), brigamos como se não houvesse mães e pais, avós, pets, crianças, lembranças, e esperanças entre os outros (é o nome que damos a quem queremos desconhecer), tornamo-nos tão especiais que acabamos desconsiderando os mínimos, como se o nascer ou o por do sol e todas e as primeiras experiências (aprender a fazer um laço, saborear um novo gosto, o primeiro passo, o primeiro beijo, saborear prazeres diversos) fossem desprezíveis. E um minúsculo ser ameaçou tudo isto. Qual o valor ou a oportunidade que temos agora, servirão as leituras, as audiências que alertavam para isto? Continuamos a eliminar, a desprezar e a brigar no momento mais necessário, parece que ainda teremos que perder mais e mais, dignidade, sensibilidade, amor e o espírito de aprendizagem, se há alguma moral, não é divina, é apenas religiosamente humana no sentido exato do termo.

Viver
E vamos tentando superar o distanciamento dos entes mais próximos e de quem conhecemos somente pela mídia, recordamos, e isto é uma das características que nos torna especialmente diferente de outros seres vivos, não melhores, até porque a memória nem sempre é bem-vinda. Recordamos os parentes queridos, os ex-colegas, os amigos, gente que rapidamente esteve em nosso viver e algumas outras que até nos impingiram desafios difíceis, talvez por isto seja impossível migrar pelo espaço e pelo tempo sem revê-los constantemente. Não é um texto melancólico, é sim a certeza de que esta é e foi a construção de uma maravilhosa grandeza, daquelas nunca imaginadas em real extensão e valor, medida especial para entender a vida completamente, antes que ela cesse por uma qualquer incerteza.

O Beijo de um grande amor

Quem não gosta? Esqueci do primeiro, provavelmente, de minha mãe em uma mistura de felicidade e a preocupação com o quarto filho para um casal de poucos recursos. Não o aprendemos na escola, embora possamos aprimorar o tipo, com os novos sentidos. Nem sempre o damos com amor, em quase todas ele representa carinho, alguns são oferecidos para amortizar uma traição, lembram de Judas? E dos vários Judas? O mais incrível terá sido o da mãe ou o do primeiro amor? Quem sabe de amigos? Recordo não do beijo físico, mas daqueles que nunca substituiriam as disponibilidades, a atenção, até mesmo no banho em um hospital, as visitas inesperadas, não são beijos para um gozo físico, são sempre, porém, de um significado inesquecível.

Um pouco de tristeza

Por vezes, eu sinto um átimo de tristeza que recorda a ingenuidade perdida, a mesma que, ao ouvir uma canção, me levava à expectativa por esta ou aquela menina, a mesma que imaginava haver coragem e força suficientes para tornar o mundo mais belo e forte, a mesma que construira a esperança por uma bela família, uma incrível comunidade de leais e honestos ou um lugar calmo por onde pudéssemos transitar e conviver praticamente sem atritos ou a que me iludira de que o sorriso do vizinho e a simpatia de um tio qualquer a eles garantissem um bom caráter.

Eu tinha, eu tive, um lugar aqui
e pensava meu
foram-se os ídolos
eu com eles me fui falecido
irmãos, parentes queridos
e os amigos conhecidos
eu que me pensava como proprietário de um lugar, que fosse apenas meu
repentinamente perdi
vieram os filhos, os netos e os sobrinhos
os queridos
foram-se os amigos e os parentes
fiquei à deriva, e reconheço o que é a vida
a apropriação de heranças devidas e indevidas

Palavras de luto
Ao grande amigo Ferreira e ao sogro Getulio Cremonini Veiga
(Uma reflexão que resultou de uma conversa com a amiga Adelaide Pithan em 27 de agosto de 2018)

Quem somos, senão o que recebemos dos outros mais o que criamos em cima? O que recebemos dos pais, dos irmãos, dos amigos, do ambiente, enfim. Nestes dias em que vivo dois lutos penso sobre a validade de sobreviver aos nossos mortos. Parece que a vida ficou mais pobre sem estas presenças, as risadas, o modo de ver o mundo, de descreverem, de ensinarem, de brigarem, de aconselharem e contrariarem..., porém, agora há pouco, em conversa com uma amiga, percebi que a nossa identidade é tudo isto, é o que absorvemos destas convivências mais o que construímos, não somos apenas indivíduos, somos a soma dos pais, dos irmãos, dos amigos (reais ou virtuais), dos livros e das vivências. Perdemos os queridos fisicamente, mas levamos o tanto que eles contribuiram, somos um tanto do que eles influenciaram e mais o que acrescentamos. Assim, eles sobrevivem em nós, em cada palavra que deles repetimos, em cada recordação, em cada risada repentina que damos ao recordá-los em cada olhar ou percepção de mundo que nos tornou melhores.

Aos pais, neste momento que tanto aperta o nosso coração
(Homenagem ao seu Getulio Cremonini Veiga, ao meu pai, a todos os pais, enfim, 27/08/2018)

O meu pai nasceu para amar, fossem seus ou os filhos dos amigos, amava a vida na exuberância que ela lhe permitia, dizia e fez, quem não, bobagens, deu conselhos, uns não segui, fez sei lá o que por aí, é certo, porém, que estas experiências dele fizeram aquela personalidade tão ímpar, e, por isto, inesquecível. Era meu pai e meu amigo, o amante de minha mãe e o parceiro em horas difíceis, era atencioso, por vezes severo, eu o vi algumas vezes muito sensível, emoção surpreendente para quem neste momento o viu como um verdadeiro homem, um pai frágil e eu um filho amigo.

Para viver
Eu nunca estive aqui
qual existência tem a garantia de quem vive por apenas viver
destas que não marcam territórios e nem dizem porque vieram?
Nunca estive, meu bem, eu só quis conhecer a ti e aos amigos, aos bichos, à natureza
eu até quis parecer e construir, fiz até mais do que devia
sou errante e nunca estive aqui
eu só quis mesmo é viver e amar e amar e amar porque parece que viver é somente sobreviver
descobrimos, porém, ao final, que basta amar para viver

Não foi nem hoje e nem agora
nunca estivemos juntos e nem fomos amigos
não tivemos coragem e nem nos vimos
nunca fomos dois ou mais e por que?
Por que acreditamos em nós?
O hoje se foi em um eu, um tu e um nós
agora resta-nos só mesmo é imaginar

A incrível suspensão do amor
dizem por aí
que só é imenso e verdadeiro aquele que não prende
que é fonte, o jardim da esperança,
e que o maior de todos liberta
e quem se prende?
Por onde se liberta, senão espiando esta dor?

Pretérito imperfeito (pequeno conto)
Estou morto, tenho certeza disto e o mais estranho é a consciência de vida. Gostaria de compreender melhor, obter uma justificativa, resta-me, porém, apenas uma percepção, talvez uma imagem. Meu labirinto são as memórias. Procuro um corpo, mãos, pés, tronco, cabeça e nada. Até imaginei um desespero, nem isto. Estou apenas aqui. Retomo o fio da meada, as relações de parentesco, as sociais, os jogos de poder, os equívocos, e nada de encontrar um presente. Recorro, então, ao dia do colapso, a dor aguda, a voz da mulher em desespero e, de repente, tudo escuro. Vou mais atrás e lembro de meus pais sorrindo, a escola, os amigos, os tios, as festas, o primeiro beijo e o sexo, o trabalho, as decepções, mesmo assim não consigo saber onde está o hoje, mal sei se é um amanhã ou um ontem. Outra vez, recorro às lembranças e descubro no botão de um antigo gravador de fitas onde estou e o que sou, um eterno arquivo em replay.

Crônica escrita nos anos 80

Assim que soube da possibilidade da clonagem, abri espaço em meu freezer para armazenar as células da pele, do sangue e dos cabelos, quem diria que estes mínimos fragmentos guardariam o meu todo? De algum destes, os cientistas deverão extrair a essência de que precisam para produzir o meu semelhante (finalmente, a humanidade poderá contar com exemplares legitimamente semelhantes. Até então todos os semelhantes pareciam muito diferentes).

Será possível um outro com o mesmo rosto, o mesmo tronco, membros e ideias? Acredito que o mesmo corpo sim, mas as ideias exigem um outro banco de dados, as memórias. Se desejo uma réplica tal qual o original, preciso muni-la de informações sobre o que fiz, deixei de fazer ou pretendi e não fiz. E mais: imagens, sons, cheiros e paladares, informações imprescindíveis para a identidade. Creio que aí terei a réplica desejada.

Se posso criar um novo eu, por que não dar umas melhoradas? Dispensar parte do que detesto e acrescentar alguns temperos? Do mais ao menos, chegaria a um belo exemplar, com visual magnífico, a forma de um deus grego. Como suportar toda a beleza almejada sem as melhorias para a tal beleza interior? Dai porque acrescentar ingredientes de inteligência, romantismo, elegância, e de uma personalidade dominante.

Detendo-me sobre o projeto, não serei mais eu. Lembra-me o plano para um filho. Nascido de minhas células, tudo fiz para subtrair e incluir, em busca de uma perfeição que julgava interessante. Sem as células e memórias que me tornam defeituoso, certamente que não sou eu. E se fosse como o original? Qualidades, defeitos, fala, as mesmas ideias, os mesmos preconceitos? Espetacular, seria imortal, viveria em outro corpo, mas acredito que meu clone enfrentaria muitos problemas, se vier a gostar, será de um mesmo alguém? Seu andar, seus protestos, sua fala, os gestos, a tudo reproduzirá? Melhor mesmo é deixá-lo, à Drumond, ser um gauche na vida.

Outros tempos
A expectativa não é mais selecionar a carta que o carteiro demorou a deixar na caixa de correspondências, é sim o instante entre um e outro SMS, sem perfume, porém com os ícones de beijos, sorrisos, abanos e abraços. Não há mais traços ou manchas a decifrar as emoções de uma escrita, há códigos rápidos, provocações abreviadas que se exaurem em sons de recebimento.

Nós neles
Perguntaram-me, tempo atrás, por que defendo ou assumo lutas que não são minhas. Ora, eu pergunto de volta, quais lutas não são minhas, aonde eu me encaixo, afinal? Em algum sexo, em alguma cor, em alguma expressão cultural, quem eu sou mesmo? E pensei, ora, eu sou humano, um ser vivo, um ser deste mundo que tem a responsabilidade de compreender os outros seres e as outras interações exatamente porque sou pensante. Toda a vez que digo ou penso "eles" eu me distancio. E isto tem um motivo: exatamente pela ignorância de realmente compreender o que vem a ser "nós".

Eu canino
Inventaram de tudo para me desmoralizar, dos desaparecimentos dos objetos aos móveis roídos, de buracos no jardim a vasos quebrados. Tudo bem, admito a responsabilidade por estes pequenos delitos, mas vocês também roeram, gritaram, espernearam, exigiram conforto e alimento e não eram por isto castigados, muito pelo contrário, prontalmente foram atendidos. Por que, então, não-raro sou o vilão desta casa? Meu xixi e cocô são bem mais do que um alívio, os odores comunicam, funcionam como advertências. Oferecem ao focinho alheio dados sobre meu porte, sexo e saúde. Eu não invadi este território, fui acolhido. Reservem-me, ao menos, um espaço para que possa extravasar os meus instintos. Preciso demarcar, roer, latir, não tenho a menor ideia da diferença entre um sapato e um brinquedo. Quero e preciso lamber para retribuir carinho, quero correr e disputar com felicidade, quero cheirar, caçar, comer, te proteger, deixe-me ser um legítimo canino. Não me prenda, não me tolha, não me agrida. Compreenda-me, apenas.



A imortalidade existe
22/08/2009
Ao professor Aníbal Bendatti


Há uma semana, um querido, e inesquecível, professor faleceu, chamava-se Aníbal Bendatti. É um pouco constrangedor mencioná-lo, como que esquecendo de tantos outros, sim, porque tive e tenho, grandes mestres, um dos quais, convivo diariamente em trabalhos. Peço, porém, a licença aos ora mestres para homenagear a este senhor, falecido aos 78 anos, e escrever por que ele foi especial em minha vida.

Nunca esqueci de uma, apenas uma, frase de Bendatti, nem raras, nem menores eram as outras, porém ela me atingiu no tempo e com uma sabedoria profunda.
Que frase foi esta? Preciso descrever o contexto.

Eu era um foca, bem foca, em um pequeno jornal na Grande Porto Alegre, lá pelo final dos anos 80. Aos três meses de trabalho, uma crise eliminou o editor e fui convidado para assumir este e outros encargos, como fotografia e reportagem. Nem é preciso dizer do susto que levei.

Intensamente afetado com o convite, recorri a um professor de uma disciplina de planejamento gráfico, acho, não recordo mais o nome da disciplina, o Aníbal Bendatti. Falei-lhe sobre o ocorrido e ele me perguntou. Por que não aceita? Disse-lhe com sinceridade: "estou com medo".
A resposta do mestre funcionou como uma varinha de Fada Madrinha (palavras não mais exatas): "ora, tu pensas (ele tinha um sotaque espanhol característico de difícil reprodução) que a gente assume responsabilidades sem medo?"
Plim, bateu a vara com uma força espetacular, aceitei então o trabalho e aprendi muito nos meses seguintes.

Nunca esqueci tal conselho. O que é mais significativo é que há poucos dias, dois após a morte deste querido mestre, uma estagiária (não minha, porém conhecida pelas andanças de meu trabalho) contatou-me, praticamente com a mesma questão. Terá que assumir a responsabilidade de editora, repórter e tudo o mais em um pequeno jornal. O que então lembrei? Óbvio, das palavras de Bendatti, incrível, não? Podem até pensar que é ficção, mas a frase se fixou em minha vida. Espero que esta foca leve o nome de Bendatti adiante (sinceramente, não o meu). É a prova concreta de somos mais, bem mais, do que apenas carne e ossos. As grandes obras provêm de mínimas experiências e os grandes mestres são como Bendatti.

Os cristãos homenageiam os seus entes com a celebração de uma missa, não sou mais cristão; o que posso fazer pelo sétimo dia de ausência física deste querido é escrever este texto. Os orientais dizem que deveríamos sempre agradecer pelo fato de vivenciarmos as experiências de vida, mais ainda quando convivemos com seres extraordinários, e Bendatti assim o foi para a minha experiência juvenil e a constatação adulta de sua sabedoria.


Mulher


"Que graça teria, porém, tal exemplar da espécie se fosse todo funcional, desprovido de atrações suculentas?"Por Nilo no Jornal Vale do Sinos em 1994



Ah, estas mulheres, com quantos acessórios as adoramos?
Seus vestidos, longos médios ou curtos, suas cangas e biquinis, as calças justas ou largas, jaquetas, blusas, casacos, os bordados, opções para a combinatória de um mesmo tipo: mulher.

Se soubessem o quanto estes adereços sugerem, alegam, convencem, agridem e dilaceram; sabem sim, senão qual a razão de tantos tormentos na busca incessante de adquirir estes mínimos complementos?

Há nelas uma secreta e perversa capacidade (intuição) de estruturar esta linguagem subliminar. Elas conhecem muito bem qual a função destes signos: a intermitência, um jogo entre o aparecimento e o desaparecimento, uma astuta (por isto os antigos as confundiam com o diabo) habilidade de disfarçar, de valorizar mesmo o invalorizável.

Ora, que há de atraente nas mãos e pés, no ventre, nas pernas e nos seios, no pescoço, no rosto, olhos, boca e nariz, nas sobrancelhas ou nas orelhas? Todos estes complementos pouca razão têm em suas isoladas existências: são, anatomicamente, funcionais. Que graça teria, porém, tal exemplar da espécie se fosse todo funcional, desprovido de atrações suculentas?

Poucas mulheres suportam a ausência de seus acessórios: o lápis, a sombra, até mesmo as lentes de contato (intenções discretas de destacar ou falsear uma herança, em algumas favorável, em outras trágica). Seus batons, brincos, anéis, braceletes, meias meinhas, lingeries, sapatos, bolsas, lenços, decotes, seus metamorfósicos cabelos... Quantos signos compõem a mulher?

As mulheres têm sim uma perversa capacidade, muito bem explorada pelo marketing e, ao mesmo tempo, adorada e invejada: são, em um ser, mãe e amante, razão pela qual muitos homens por elas tenham se sacrificado, por elas matem, a elas até mesmo agridam.
O que é este ser adorável, que edipianas razões explicam sua doce e selvagem mágica sobre os homens?



E o vento levou às gargalhadas
Contam que, certo dia, um cliente idoso confessou à sua, um pouco comadre, terapêuta, conselheira, e finalmente dentista, um desejo especial. Prevendo o avizinhamento de sua morte, gostaria que a despedida de seus restos mortais tivesse um ambiente alegre, sem a tristeza tão comum às cerimônias e aos lutos.


Não é que, alguns dias depois, o cliente realmente faleceu? Infelizmente, a tristeza reinou por algum (não muito) tempo entre os familiares.


Limitando-se a seguir as orientações do falecido, após a cremação do corpo, a esposa e a cunhada dirigiram-se ao sítio da família, a fim de despejar as cinzas na querência amada. O dia calmo merecia a cerimônia, o que levou as duas, trajadas adequadamente para a ocasião, serenas e decididas a cumprir o prometido. Postaram-se em uma pequena elevação, rezaram e, finalmente, a esposa pegou o depositório das cinzas, tirou a tampa e o virou.


Embora a quietude do tempo, repentinamente, sabe-se lá de onde, uma pequena rajada de vento levantou os vestidos e encobriu os seus corpos com as cinzas. Passado o imediato alvoroço e recompondo as vestimentas, sobrevieram as gargalhas. O tal cerimonioso, solene e triste momento tornou-se uma sessão quase humorística.


Mas este sobrenatural poder, revelado em uma confissão à amiga, não se restringiu à cena fotográfica. A despedida cômica estendeu-se a um momento privado e íntimo, agora no box do banheiro. Ao banhar-se, a esposa percebeu o que ocorria e não se conteve ao pronunciar: "...desculpe-me, querido, não consegui completar a tarefa de distribuir as tuas cinzas às terras do sítio, infelizmente, o que me restou é vê-lo escorrer esgoto abaixo."





Observação do administrador, autor deste texto: a história real foi narrada a mim por uma amiga do falecido. Omito os nomes a fim de preservá-los de constrangimentos (a não ser que reivindiquem a indicação), agradeço de público tanto à contadora da história e aos protagonistas desta espetacular história (acrescento que o falecido era espírita).
Postado no blog http://hugoalmeidamecanica.blogspot.com


Ritos de namoramar
Publicado em 1994
Não há amor sem ritual, há sexo. Mesmo ele, se ritualizado, maior satisfação produz. Isto mostra o grau de dependência que a humanidade tem para com os ritos. Eles nos preparam para uma passagem em cada fase da vida, seja entre grupos sociais ou entre faixas etárias. Pode a criança sociabilizar-se sem os ritos religiosos, sem as formaturas na creche e sem os aniversários? podem os adultos suportarem a vida sem os ritos místicos, sem o o do casamento e todas as solenidades de admisão e posse?


Se o rito de amar é excluído, sobra a lógica da preservação da espécie. É ele que valoriza o corpo, intensifica valores imaginários e é através dele que se justificam tantas horas frente ao espelho, os gastos em diversos tratamentos de pele, cabelos etc e tal.

O ritual do amor é uma intensificação artificial para o ato frio da reprodução. Dignifica o outro, encobrindo defeitos e traumas gerados pela designificação diária. O ritual do amor é o processo pelo qual se agrega valor ao ego alheio. Constantemente, apaixonados mentem. Esta espécie de amor pode ser desenhada em um gráfico, poucas vezes (e não serão apaixonados) com um traço retilíneo, expressão de uma insuportável tranquilidade.

Toda atração apaixonada (doentia se quiserem) baseia-se no princípio da incerteza, causa máxima da valorização. Se absolutamente certo, desvaloriza, se há cobiça alheia e se incertezas existem, mais intensa é a atração, embora absurda.

Amar apaixonadamente é, portanto, um jogo ritualista, às vezes de tal caráter, que, ao executá-lo, nos tornamos escravos: impossível amar sem dor, esta que companheiro algum sente tanto quanto a gente.

Pode alguém se apaixonar sem o fulgor colérico, sem ímpetos e impulsos?

Apaixonar-se, quem não o viveu, é a mais agradável e perigosa e absurda e inexplicável sensação. Só após a paixão se sabe, depois do encantamento adolescente, cego e surdo.

Mas enganam-se os que consideram o amor avesso ao prazer afetado da paixão. O que aparenta tranquilidade e monotonia subsiste graças ao rito constante do namoramar.




A tradução de um corpo

"...um suave e hipnótico toque que lê e escreve a linguagem de um corpo por nós ultrajado ou narcisicamente amado."

POR NILO em 1994 no jornal VS (SÃO LEOPOLDO)

A melhor forma de ler a forma de um corpo são as mãos, embora olhos antes fantasiem as magistrais curvas e retas (mais curvas do que retas) de todo e qualquer corpo. Não falo aqui da leitura unicamente erótica. Tantas são: a que traduz o carinho, a que traduz impertinência e a que traduz indiferença: todas são leituras instintivas, aprendidas muito antes de qualquer escola. Triste, nem todos conhecem seus segredos. A pedagogia que nos habilita depende de dois ingredientes básicos, o amor dos pais e a sensibilidae, infelizmente restrita a poucos iluminados.

Já percebeste que certas pessoas têm no leve toque um verdadeiro poder de nos causar arrepios? Pessoas às vezes distantes, pessoas, que num só lapso de contato deixam as suas marcas? Segredo.

Pois a leitura que as mãos fazem revelam frases escritas pelo inconsciente, revelam um código estranho, o toque de uma tendência. Por isto o toque amoroso é tão especial, todo frenético e todo exclusivo. Mas há alguns destes que só verdadeiros magos sabem executar. O do verdadeiro amor, um suave e hipnótico toque que lê e escreve a linguagem de um corpo por nós ultrajado ou narcisicamente amado. É como se ele fosse um excitador de valores. Ele induz a forma, corrige-a, transforma-a em uma nova dimensão, mentindo, em sua graça, sobre a suave beleza da pele, sobre a presença ou ausência dos músculos ou sobre a presença ou omissão de certas rugas.

O toque que a milímetros passa é até pior do que o diretamente friccionado. Ele antecipa a sua presença e por isto causa o desespero de uma evidência. Ele funciona como se eletricidade fosse. Ele, aos ansiosos angustia. Aos ansiosos, é uma espécie de covardia da posse. Mas não, os ansiosos o incompreendem. Ele quer, isto sim, provocar a mais alta intensidade, quer excitar o calor, quer tentar decodificar a forma de uma aura. Ansiosos o recusam, ansiosos o abominam, ansiosos o perdem. Que verdadeira e intensa sensação seria se ele pudese chegar ao suprassumo sensisitivo!

É, há tantas leituras ainda a serem feitas. Uma das quais poderia criar um infinito elo entre dois seres cuja distância logo se presente na indiferença plena que revelam no ato das mãos que não sabem se amar.

Museu do trem fantasma

Publicado em 31/01/1994 no Jornal Vale do Sinos – Página 4
(na época o local estava abandonado, hoje há um museu bem recuperado no local, daí porque não inserimos imagens)

“O presente é todo o passado e todo o futuro. Se há Platão e virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas, é porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão.”
Fernando Pessoa no Poema Ode Triunfal.

O estudo do passado constitui o conhecimento fundamental para qualquer organização humana, razão pela qual várias áreas da civilização, da economia à medicina, acabaram se constituindo. Mas é de restos (ruínas e artefatos) que os historiadores conseguem decifrar boa parte dos traços de uma época sem testemunhos vivos.

Ruínas ou fantasmagorias (mais assustadoras pelo estado de abandono do que pelos imaginários espectros que os habitam), os restos possibilitam a leitura de um passado desconhecido. A conservação dos monumentos, prédios e peças dos antepassados, demonstra, deste modo, o grau de evolução alcançado por uma comunidade.

A comunidade leopoldense, dado o estado em que se encontra o Museu do Trem, encontra-se, deste modo, num estágio que nada deixa a desejar em comparação com os povos primitivos. Tal como bárbaros, os leopoldenses estão permitindo que o museu se deteriore a uma velocidade assombrosa. Talvez este seja o sintoma da Síndrome de Insensibilidade Adquirida, doença comum a tecnocratas: ela diminui a capacidade de simbioticamente valorizar e compreender a diversidade das relações humanas.

É possível que, ao vislumbrarmos o prédio e o conjunto de vagões em ruínas, não consigamos, daqui a um breve tempo, identificá-los como um museu ou sequer um veículo, a destruição é rápida. O avanço da ferrugem, dos microorganismos e das ervas daninhas está provocando uma perda da referência, nunca mais recuperada, quer seja por réplicas, quer seja por crônicas reproduzidas.

Tantas vezes anunciado e protestado, o abandono do Museu do Trem não encontra culpados: a união indica o estado que transfere para o município, que, acuado, se diz imobilizado pela ausência de recursos. Os políticos mais tempo se dedicam plantando notícias ao gosto da imprensa do que fisalizando ou formulando projetos de cunho social, econômico ou cultural.

A era do pioneirismo - imaginário romântico de um espírito empreeendedor - jaz naquelas ferrugens, frestas e madeiras, cada vez mais podres do Museu do Trem. Dele se banqueteiam ervas daninhas e reduzidos seres.

Talvez seja mesmo esta a única destinação para o amontoado de sucata e ruínas, já que a riqueza civilizatória cristalizada em cada engrenagem e detalhe arquitetônico a poucos sensibiliza. Talvez algum dia no futuro igualmente assim procedam nossos bisnetos, insensíveis ao Platão ou Virgílio que há em cada máquina e nas luzes.

Inocência reciclada


Que tal reciclar um beijo, já esquecido, as ilusões (que já disseram, perdidas), os sonhos (que não acabaram). Precisamos acreditar em uma realidade f(t)osca? É proibido imaginar, sentir calor e arrepios? Devemos esquecer a inocência, gatilho maior de toda e qualquer esperança? Não estava nela o gatilho para as experências?
Ser adulto é eliminar esperanças, observar lá de trás os que estão no front?
Quem está realmente ganhando esta luta?






Pieguinhas

Consegue, acaso, olhar para o céu e contemplar as nuvens, as estrelas ou o azul? Olhe. Se nada observares, se achares que são fotografias, paciência. Poderás dizer que nada de mais ocorre no que vês, cheiras, degusta, ouves e tocas? Então porque o mesmo aroma, a mesma visão, o tato e o gosto são especiais em certas horas. São sempre o que são.
Quer recordar?
O que lembra da tua infância? Um som, uma imagem, um cheiro, um gosto ou uma superfície? Lembras, acaso, a primeira vez que fizeste amor com entrega? Tudo o que é especial nada é mais do que é. O que realmente tornou especial foi você, só o teu sentimento. Até mesmo o primeiro beijo. Foi a tua percepção que o elevou ao elenco das memórias mais queridas. Quem sabe as nuvens, o azul, o cheiro e o gosto de café, a pele, o prazer oferecido, o som quase imperceptível de até mesmo um inseto, tudo isto volte a lhe fazer bem? Como? Não sinta estas experiências como vividas, até porque estas que vives nunca são as mesmas: dias e segundos sempre novos conserve a expectativa (pela experiência).